Por Vinícius Diniz Monteiro de Barros
Consultor Jurídico - 24/09/2011
Todo ano, o Executivo precisa encaminhar, com certa antecedência, o projeto de Lei Orçamentária do ano seguinte para o Legislativo. Nesse período de elaboração da LOA, o governo sofre pressões de todos os lados. Um particular conjunto de pressões provém dos servidores públicos, quanto à recomposição do valor real das remunerações, contra as perdas inflacionárias, conforme o artigo 37, inciso X, da Constituição Federal.
No âmbito da União, o discurso do governo neste tema se baseia na anunciada crise internacional, que não é episódica, mas já perdura desde o colapso dos sistemas financeiro e imobiliário nos EUA. Essa crise duradoura, que, para acalmar o mercado, já foi chamada de “marolinha” pelo então presidente Lula, tem se transformado em um tsunami quando os atuais ocupantes de cargos comissionados no planalto central se sentam à mesa de negociações com servidores públicos federais das mais diversas categorias. Por isso, apesar de, em 2011, a meta do superavit primário ter sido alcançada 34 dias antes em comparação com o ano anterior; apesar de a arrecadação tributária nunca ter sido maior “na história desse país” e apesar de o dinheiro doravante arrecadado ter por destino um fundo já multibilionário de combate à crise (permanente), o recado do governo federal foi claro para os servidores: “reajustes, só em 2013”.
Neste quadro, o discurso do governo contém um pleito aos servidores. Trata-se de um pleito de colaboração. Os servidores, irmanados ao governo, são convocados ao enfrentamento da crise-tsunami.
Contudo, aparentemente sem aderir à irmandade, o Judiciário e o Ministério Público da União encaminharam ao Legislativo proposta de Orçamento – próprio – com previsão de aumentos remuneratórios da ordem de 14%, tanto para juízes e procuradores, quanto para servidores dos respectivos quadros de apoio. Na última semana, o Executivo ignorou que essas duas instituições possuem, segundo a Constituição, autonomia orçamentária e financeira, decotando a proposta de reajustes, antes de remeter o projeto ao Legislativo. Foi o bastante para que o Judiciário, por intermédio do presidente do Supremo Tribunal Federal, reagisse com veemência. Para a unanimidade dos ministros daquele tribunal, o ato do Executivo teria colocado a Constituição, tal como compreendida pelo próprio STF, sob ameaça.
E o governo recuou, deixando aos aliados do Legislativo a tarefa de vetar ou homologar os reajustes apenas para juízes, procuradores e suas respectivas carreiras de apoio.
Dois aspectos muito importantes podem ser destacados nessa sequência de relações institucionais havida na última semana. Em primeiro lugar, o Executivo descumpre a Constituição ao negar o reajuste anual aos servidores (artigo 37, X). Em segundo lugar, o Executivo descumpre a Constituição ao ignorar a autonomia orçamentária do Judiciário e do Ministério Público.
A diferença entre as duas situações está em que o STF não interpreta a autonomia orçamentária do Judiciário e do Ministério Público como norma constitucional de eficácia limitada, isto é, que depende de lei ordinária para atingir todos os seus efeitos. A autonomia orçamentária dessas instituições tem eficácia plena, na visão do STF. Já o direito de todos os demais servidores públicos do país ao reajuste que lhes mantenha o poder aquisitivo, embora previsto com igual clareza no artigo 37, inciso X, da Constituição, dependeria da vontade política do Executivo para encaminhar projeto de lei específica ao Legislativo.
Com efeito, não é necessária lei para esclarecer que manter o poder aquisitivo significa, ao menos, enfrentar as perdas inflacionárias. Porém, quando o Executivo deixa de fazer até esse mínimo em relação aos servidores públicos não-juízes e não-procuradores, o STF, mesmo provocado, não reage com a força a que se assistiu na última semana.
Fato é que o aumento do teto remuneratório do servidor público, que equivale à remuneração do ministro do STF, gera movimentação imediata de todas as demais carreiras do serviço público federal. Afinal, por mais juridiquês que se gaste, importando doutrinas alemãs ou italianas, os servidores públicos federais não-juízes-nem-procuradores não dimensionam nem aceitam o porquê do tratamento diferenciado.
Com razão. Os professores universitários das faculdades de Direito das universidades federais, que regem o ensino jurídico público nos respectivos estados federados; os pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz ou de toda área de ciência e tecnologia da União, que tanto trabalham para que o Brasil não se mantenha como mero exportador de commodities; os advogados da União e auditores da Receita ou do Trabalho, que fazem a arrecadação tributária federal alcançar recordes ano após ano, mediante atuação eficiente contra sonegadores; os membros da Polícia Federal, cujo esforço impede a evasão de divisas na casa das centenas de milhões de reais por ano; os Defensores Públicos, que implementam todos os dias direitos fundamentais daqueles que alegadamente constituem o público preferencial de atuação do governo federal; além de todas as carreiras de apoio das Universidades, dos Ministérios, das Autarquias, da AGU e da DPU – em suma, nenhuma dessas figuras, apenas a título de exemplo, merece o reajuste que o STF pode defender para si mesmo?
Eventual tratamento diferenciado dado pelo governo às carreiras federais gerará inconformismos, porque a Constituição, cuja compreensão não pode ser privatizada por qualquer órgão ou função[1], muito menos em causa própria, não acolhe a parêmia “orwelliana” de que uns servidores públicos sejam mais iguais do que os outros.
Por sua vez, os inconformismos levam a demandas e essas podem chegar ao Judiciário. Se isso acontecer, cumpre conferir se os juízes se irmanarão finalmente ao Executivo, autorizando o corte de ponto do servidor grevista (como fez, por exemplo, no precedente Mandado de Injunção n. 3.085, Rel. Min. Gilmar Mendes), ou aos servidores, para fazer valer a Constituição (artigo 37, X) e tratar o direito alheio como o próprio.
A Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais acompanhará, com atenção e denodo, o desenrolar dos acontecimentos, a fim de que a revisão geral da remuneração dos servidores públicos tenha sua execução nos termos da Constituição: para todos, sempre na mesma data e sem distinção de índices.
Vinícius Diniz Monteiro de Barros é defensor público federal em Minas Gerais, membro da Comissão de
Prerrogativas da Defensoria Pública da União.
Consultor Jurídico - 24/09/2011
Todo ano, o Executivo precisa encaminhar, com certa antecedência, o projeto de Lei Orçamentária do ano seguinte para o Legislativo. Nesse período de elaboração da LOA, o governo sofre pressões de todos os lados. Um particular conjunto de pressões provém dos servidores públicos, quanto à recomposição do valor real das remunerações, contra as perdas inflacionárias, conforme o artigo 37, inciso X, da Constituição Federal.
No âmbito da União, o discurso do governo neste tema se baseia na anunciada crise internacional, que não é episódica, mas já perdura desde o colapso dos sistemas financeiro e imobiliário nos EUA. Essa crise duradoura, que, para acalmar o mercado, já foi chamada de “marolinha” pelo então presidente Lula, tem se transformado em um tsunami quando os atuais ocupantes de cargos comissionados no planalto central se sentam à mesa de negociações com servidores públicos federais das mais diversas categorias. Por isso, apesar de, em 2011, a meta do superavit primário ter sido alcançada 34 dias antes em comparação com o ano anterior; apesar de a arrecadação tributária nunca ter sido maior “na história desse país” e apesar de o dinheiro doravante arrecadado ter por destino um fundo já multibilionário de combate à crise (permanente), o recado do governo federal foi claro para os servidores: “reajustes, só em 2013”.
Neste quadro, o discurso do governo contém um pleito aos servidores. Trata-se de um pleito de colaboração. Os servidores, irmanados ao governo, são convocados ao enfrentamento da crise-tsunami.
Contudo, aparentemente sem aderir à irmandade, o Judiciário e o Ministério Público da União encaminharam ao Legislativo proposta de Orçamento – próprio – com previsão de aumentos remuneratórios da ordem de 14%, tanto para juízes e procuradores, quanto para servidores dos respectivos quadros de apoio. Na última semana, o Executivo ignorou que essas duas instituições possuem, segundo a Constituição, autonomia orçamentária e financeira, decotando a proposta de reajustes, antes de remeter o projeto ao Legislativo. Foi o bastante para que o Judiciário, por intermédio do presidente do Supremo Tribunal Federal, reagisse com veemência. Para a unanimidade dos ministros daquele tribunal, o ato do Executivo teria colocado a Constituição, tal como compreendida pelo próprio STF, sob ameaça.
E o governo recuou, deixando aos aliados do Legislativo a tarefa de vetar ou homologar os reajustes apenas para juízes, procuradores e suas respectivas carreiras de apoio.
Dois aspectos muito importantes podem ser destacados nessa sequência de relações institucionais havida na última semana. Em primeiro lugar, o Executivo descumpre a Constituição ao negar o reajuste anual aos servidores (artigo 37, X). Em segundo lugar, o Executivo descumpre a Constituição ao ignorar a autonomia orçamentária do Judiciário e do Ministério Público.
A diferença entre as duas situações está em que o STF não interpreta a autonomia orçamentária do Judiciário e do Ministério Público como norma constitucional de eficácia limitada, isto é, que depende de lei ordinária para atingir todos os seus efeitos. A autonomia orçamentária dessas instituições tem eficácia plena, na visão do STF. Já o direito de todos os demais servidores públicos do país ao reajuste que lhes mantenha o poder aquisitivo, embora previsto com igual clareza no artigo 37, inciso X, da Constituição, dependeria da vontade política do Executivo para encaminhar projeto de lei específica ao Legislativo.
Com efeito, não é necessária lei para esclarecer que manter o poder aquisitivo significa, ao menos, enfrentar as perdas inflacionárias. Porém, quando o Executivo deixa de fazer até esse mínimo em relação aos servidores públicos não-juízes e não-procuradores, o STF, mesmo provocado, não reage com a força a que se assistiu na última semana.
Fato é que o aumento do teto remuneratório do servidor público, que equivale à remuneração do ministro do STF, gera movimentação imediata de todas as demais carreiras do serviço público federal. Afinal, por mais juridiquês que se gaste, importando doutrinas alemãs ou italianas, os servidores públicos federais não-juízes-nem-procuradores não dimensionam nem aceitam o porquê do tratamento diferenciado.
Com razão. Os professores universitários das faculdades de Direito das universidades federais, que regem o ensino jurídico público nos respectivos estados federados; os pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz ou de toda área de ciência e tecnologia da União, que tanto trabalham para que o Brasil não se mantenha como mero exportador de commodities; os advogados da União e auditores da Receita ou do Trabalho, que fazem a arrecadação tributária federal alcançar recordes ano após ano, mediante atuação eficiente contra sonegadores; os membros da Polícia Federal, cujo esforço impede a evasão de divisas na casa das centenas de milhões de reais por ano; os Defensores Públicos, que implementam todos os dias direitos fundamentais daqueles que alegadamente constituem o público preferencial de atuação do governo federal; além de todas as carreiras de apoio das Universidades, dos Ministérios, das Autarquias, da AGU e da DPU – em suma, nenhuma dessas figuras, apenas a título de exemplo, merece o reajuste que o STF pode defender para si mesmo?
Eventual tratamento diferenciado dado pelo governo às carreiras federais gerará inconformismos, porque a Constituição, cuja compreensão não pode ser privatizada por qualquer órgão ou função[1], muito menos em causa própria, não acolhe a parêmia “orwelliana” de que uns servidores públicos sejam mais iguais do que os outros.
Por sua vez, os inconformismos levam a demandas e essas podem chegar ao Judiciário. Se isso acontecer, cumpre conferir se os juízes se irmanarão finalmente ao Executivo, autorizando o corte de ponto do servidor grevista (como fez, por exemplo, no precedente Mandado de Injunção n. 3.085, Rel. Min. Gilmar Mendes), ou aos servidores, para fazer valer a Constituição (artigo 37, X) e tratar o direito alheio como o próprio.
A Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais acompanhará, com atenção e denodo, o desenrolar dos acontecimentos, a fim de que a revisão geral da remuneração dos servidores públicos tenha sua execução nos termos da Constituição: para todos, sempre na mesma data e sem distinção de índices.
Vinícius Diniz Monteiro de Barros é defensor público federal em Minas Gerais, membro da Comissão de
Prerrogativas da Defensoria Pública da União.
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